A vida é uma caixinha de surpresas desagradáveis
A vida é uma caixinha de surpresas desagradáveis, Quando saí mais cedo do trabalho, naquela fatídica tarde de sexta-feira, estava pensando seriamente em ficar algumas horas na banheira quando chegasse em casa – imersa em água quentinha e sais de banho importados – prepara r um balde de pipoca amanteigada no microondas e passar o resto do dia maratonando minhas séries favoritas da Netflix. Meu humor estava uma maravilha, tudo porque tinha concluído uma fase importante do meu amadurecimento profissional. Acabava de cumprir um mês de aviso prévio e poderia me dedicar única e exclusivamente ao que amava fazer.
Nunca havia me passado pela cabeça que aquele dia tão feliz terminaria em uma tragédia digna de Shakespeare. Eu devia ter desconfiado que, nos últimos meses, minha vida estava boa demais para ser verdade. Cantarolando, passei pela portaria do prédio, cumprimentei o porteiro e prestei mais
atenção do que o normal nas crianças que brincavam no playground.
Os pássaros pareciam cantar junto comigo enquanto faziam seus ninhos nas tantas árvores que compunham a área de lazer localizada no térreo. Um deles sobrevoou a minha cabeça e acabou me presenteando com uma bela quantidade de cocô. Naquele momento, eu devia ter percebido. O passarinho, coitado, só estava tentando me alertar de que melecar a cabeça seria o menor dos meus problemas.
Eu não queria limpar a sujeira com as mãos, por isso a deixei onde estava e tentei respirar fundo para não mandar o bicho ir com uma grande quantidade de ar, como se quisesse respirar a minha mais nova escolha, o mais novo rumo a ser seguido. Às vezes, o simples fato de tomar uma decisão é o bastante para que uma vida inteira ganhe um sentido que nunca teve antes.
Peguei as chaves do apartamento na minha bolsa, abri a porta e logo senti um cheiro maravilhoso de algo assando no forno. Fui até a cozinha só para constatar que o meu bolo favorito de cenoura, que mais tarde ganharia calda de chocolate estava sendo prepara do.
— Karen?
Não acredito que você está fazendo bolo de cenoura! — Andei pelo corredor que dava para a suíte, de repente ansiosa para encontrá-la. Ela merecia um beijo e um agradinho por aquela atitude fofa. Eu não sabia cozinhar porcaria nenhuma, então ter alguém em casa para fazer um delicioso bolo era como ganhar na loteria. — É a segunda melhor notícia do dia, a primeira é o fim da minha vida assalariada! Até já esqueci que um passarinho safado fez cocô na minha cabeça. Imagina que…
Abri a porta da suíte com certa pressa e gritos agudos ecoaram pelo apartamento, deixando-me para lisada. A cena não foi nada agradável. Shakespeare provavelmente fecharia as cortinas naquele instante, para que ninguém tivesse o desprazer de acompanhar o momento exato em que toda uma vida, repleta de expectativas, se rompia e se esvaía, reduzindo-se a absolutamente nada.
— Calma, Manu, não é nada disso que você está pensando! Mal consegui ouvir a frase, que parece fazer parte do vocabulário de todos os seres que
são pegos no flagra.
— Acho que eu vou embora — uma segunda voz, proveniente de uma morena com cabelos cacheados e olhar fatal, fez com que eu me arrepiasse dos pés à cabeça. A morena recolheu um monte de roupas jogadas no chão e desfilou a bunda empinada até se perder dentro do banheiro. Observei o rosto assustado de Karen enquanto ela gesticulava e falava mil coisas que poderiam muito bem ser em árabe, porque não entendi bulhufas. Uma
lágrima deslizou pelo meu rosto enquanto eu franzia a testa para tentar traduzir o que aquela mulher nua diante de mim queria dizer.
Depois de muito esforço, consegui captar duas simples palavras:
— … uma amiga…
Karen parou de soltar justificativas, mais falsas do que seus peitos enormes. Eu estava começando a ficar nervosa, e quando ficava nervosa começava a falar feito uma alucinada. Puxei todo o meu fôlego e finalmente abri a boca:
— Karen, você deve achar que o meu cérebro é do tamanho da menor cabeça de alfinete do mundo, porque não é possível! Não dá para acreditar que você quer que eu acredite que uma maldita amiga estava nua na sua cama enquanto vocês brincavam de ginecologista na maior inocência do mundo.
— Virei as costas e abri a porta do guarda-roupa. Puxei a primeira bolsa grande que encontrei e comecei a colocar algumas roupas dentro.
— Não vou ser feita de idiota. Em cima da nossa cama! Trocou os lençóis pelo menos? Eu estou muito puta, muito, muito puta!
— Manu, o que você está fazendo?
— Indo embora da merda desta casa! — gritei, tão alto que a morena gostosona saiu do banheiro, já vestida, e passou por nós feito um foguete.
Karen ainda ficou na dúvida se continuava me questionando ou se seguia a desconhecida, porém acabou ficando onde estava.
— Você não pode ir, Manu! E o Glamorosas & Cia? Eu investi pesado na sua carreira de estilista e…Fechei o zíper da bolsa porque não aguentava mais ficar naquele lugar, ouvindo a voz daquela mulher. Precisava ir embora, por mais que não soubesse para onde ir. Não queria nem olhar para a cara de Karen. A pessoa que tinha sido minha companheira durante onze meses fez questão de destruir a minha confiança e, de quebra, o meu coração. De um segundo para outro alguém importante havia se tornado nada dentro de mim. O processo era tão dolorido que eu continuava chorando.
— Não vai ter mais Glamorosas & Cia, Karen. Você me traiu. — Apontei um dedo bem na cara dela, que ficou olhando para a minha unha com uma expressão de ―você devia ter ido ao salão resolver o problema com suas cutículas. — Nosso envolvimento acaba aqui. Nos negócios e na vida.
— Mas, Manu, você não tem dinheiro. Não pode me deixar assim!
— Enfia a grana bem no meio doteu…
— Parei antes de perder a compostura de vez. Falei mais baixo: — Não quero nada que venha de você. Acabou, Karen. Se fosse para ir embora, seria com a cabeça erguida e sem que a vizinha fofoqueira que morava ao lado soubesse. Ela sempre ouvia o que acontecia dentro do nosso apartamento e espalhava pelo prédio como minha vida sexual era bastante ativa. Os moradores nos olhavam com expressões que revelavam o mais puro preconceito.
— Não faz isso comigo, Manu. Por favor, eu te imploro!
— Karen começou a chorar enquanto eu pendurava a bolsa em minhas costas e tentava alcançar a porta o mais depressa possível.
— Você não pode me deixar assim! A Gabriela é apenas uma amiga… Eu juro! Você está careca de saber que eu gosto de liberdade sexual e… Parei e a encarei de perto. Karen arregalou os olhos. Ela morria de medo do meu olhar quando eu estava com raiva de alguma coisa.
— Você sabia que eu era monogâmica quando resolveu me assumir
— rosnei em plena fúria.
— Não gosto de compartilhar nada que é meu. Se gosta tanto de liberdade sexual, por que aceitou ficar comigo? Por que me chamou para morar aqui e me fez acreditar que teríamos um futuro?
— Porque… — ela fungou exageradamente. — Porque eu te amo, Manu. Revirei os olhos e enchi a boca para , finalmente, perder a compostura:
— Foda-se você e esse amor de merda que sente por mim!
Encontrei a tal amiguinha na sala, sentada no sofá, acompanhando toda aquela baixaria. Olhei feio para ela e abri a porta. Karen ainda tentou me fazer ficar para explicar uma situação que já estava explicada: a minha namorada – ou melhor, ex – era uma promíscua que nunca mudaria. Eu devia ter escutado meu melhor amigo, Caju, que já havia tentado abrir meus olhos dizendo que Karen não passava de uma quenga.
Foi pensando nele que desci pelo elevador, e novamente um pássaro sobrevoou minha cabeça e terminou a obra de arte que o outro bicho tinha começado. Soltei uns trezentos milhões de palavrões, daquela vez chamando a atenção das crianças e das babás que as vigiavam. Ninguém me olhou de maneira amistosa enquanto eu atravessava a portaria aos trancos e barrancos.
Minha vida estava acabada. Só quando olhei para os dois lados da avenida eu finalmente compreendi que não tinha para onde ir, e que isso significava que eu era a mais nova moradora de rua do pedaço. Sem emprego estável e sem perspectiva de emplacar minha própria grife, o que sobraria de mim?
Eu não podia mais contar com o dinheiro de Karen, muito menos com o dos pais dela, que eram empresários riquíssimos. Minha mãe estava curtindo uma eterna lua de mel com seu mais novo marido em alguma cidadezinha da Inglaterra – e eu, definitivamente, preferia morrer a pedir ajuda financeira para ela. Meu pai? Eu nem sabia o nome dele. Minha avó estava em um asilo que levava mais da metade do meu salário para ser bancado. Não havia mais nada meu em lugar nenhum, pois eu tinha apostado todas as minhas fichas em um relacionamento que não passara de uma grande decepção.
Tirei meu celular do bolso e digitei o número da única pessoa que não tinha me abandonado no mundo – e que eu duvidava muito que um dia faria algo de ruim comigo. O meu melhor amigo, o cara que não passava de um canalha, mas que era o meu companheiro de cerveja, futebol, conselhos amorosos, baladas, artes marciais e Netflix. Carlos Júnior, ou simplesmente Caju, para os mais íntimos, fora meu vizinho a vida inteira e era a única saída que eu tinha diante de uma situação tão trágica.
Ele atendeu no terceiro toque:
— Fala, meu chuchuzinho! — Caju soltou um riso amistoso. Ele sabia que eu odiava ser chamada assim. Era como uma antiga namorada me chamava e o idiota nunca me deixava esquecer.Eu sorri, ainda que estivesse chorando.
— Ei, seu escroto. Onde você está?
— No meio de uma festa, tentando vender um apartamento para uma ruiva que é um tesão! — Balancei a cabeça em negativa, ainda rindo e chorando, tudo ao mesmo tempo.
—E você acaba de me fazer perder uma deixa! Está me devendo uma.
— Preciso de você. Te vejo no 610 — murmurei, sabendo que o meu amigo largaria qualquer coisa que estivesse fazendo para me ajudar.
— Estou indo, Manu — como previsto, ele respondeu seriamente, já sabendo que, se eu pedia ajuda, o problema só podia ser bem sério. — Vai ser o quê? Chocolate ou cerveja?
— Os dois? — eu me vi incapaz de decidir.
— Certo. As noites de chocolate com cerveja são as melhores. Caju desligou sem esperar que eu respondesse, e nem precisava. Ele me conhece o
suficiente para compreender que eu odeio falar qualquer coisa por telefone. Continuei sorrindo feito uma boba, porque ele também sabia perfeitamente que as noites de chocolate com cerveja eram as mais difíceis para nós dois. Eu só esperava sobreviver a mais uma delas.